sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Cabra da Peste

Era sempre quente e seco na pequena cidade de Arcoverde, conhecida como a porta de entrada do sertão pernambucano, um último reduto antes da vastidão infértil que cortava a região. Foi lá que nasceu meu pai, e sobre nossa árvore genealógica nem ele e nem ninguém saberia contar. Éramos fruto daquela terra inóspita, calejados e retorcidos pelo sol geração pós geração, donos da mesma venda que fora de meu avô, antes dele de meu bisavô, e no futuro haveria de ser minha.
Já somava sete anos, nunca tinha pisado em um colégio e ninguém pretendia que pisasse. Por ser o filho mais velho entre quatro irmãs, era o preferido do pai e o acompanhava todos os dias ao trabalho, onde cuidava de organizar mangas, melões e acelrolas nas suas devidas prateleiras. Meu pai cuidava da carne.
Aquela terça-feira tinha tudo para ser tranqüila e monótona como todas as outras que me recordo. A manhã fora cotidiana e já era meio dia, o calor estava tal, que não ousávamos sair debaixo de um teto, eu assistia o asfalto daquela pequena cidade arder projetando curvas no ar.
Quase caía no sono quando, de supetão, um estranho entrou afobado pela porta principal, tomou cuidado para evitar-me, foi de encontro a meu pai e lhe falou ao ouvido.
Hoje, passados mais de 20 anos, ainda me pergunto quais foram as suas palavras, pois ao escutá-las meu pai agarrou o facão que utilizava para romper carnes com ossos e saiu apressado, ainda vestido de branco e coberto de sangue bovino. Fiz o que devia fazer, cuidei da venda.
Eram três da tarde quando ele voltou. Não falou coisa alguma, olhou-me sério, estava suado, ainda com as vestimentas de açougueiro e ainda empunhando o mesmo facão.
Foi lacrimejando que colocou a mão esquerda estendida sobre o balcão; com a direita, levantou sua arma no alto e em uma apunhalada certeira cortou o próprio dedo indicador.
Sem nenhum grito, sem nenhum remorso, estancou o sangue com um pano qualquer, olhou-me por uma última vez, disse “cuida da família” e partiu para sempre.