segunda-feira, 26 de agosto de 2013

A Última Visita

Sainete em um ato. Inspirado na obra “Estranho Cavaleiro” de Michel de Ghelderode.

PERSONAGENS

Os Prisioneiros
Todos eles calamitosos, asmáticos, doentes, sujos e vestidos com farrapos.
MALÍCIO – Inteligente, articulado e febril, refém das próprias ilusões.
LAMÚRIO – Violento, medroso e triste, mas inocente no seu pensamento limitado.
O Bardo
BARDO – Coberto com uma capa negra e um grande capuz que impossibilita ver sua face. Introduz o sainete.
LUGAR

Torre/prisão de uma fortaleza medieval. É noite de inverno e chove. A prisão tem uma janela sem grades e uma porta sempre trancada. Penumbra. Som constante de chuva.

Os prisioneiros estão sentados cada um de um lado da cela e sentem muito frio. Entra o Bardo.

BARDO - Não é preciso ter fé. Não é preciso errar por mundos distantes e muito menos tocar anjos ou demônios; os homens não precisam de mística alguma para ver a morte. O que segue é a história de dois malditos que a viram e escutaram. Posto que somos semelhantes, escutai!

Sai o Bardo.Os prisioneiros iniciam o diálogo.

MALÍCIO - A morte é bem vinda entre nós. Está muito frio e já não tenho esperança alguma. Quem será que vai primeiro, eu ou tu, imundo? 
LAMÚRIO – Tomara que tu. Carniça.
MALÍCIO – Eu também espero que venha buscar a mim. Assim não precisarei passar horas em agonia, sozinho nessa torre maldita, obrigado a observar teu cadáver fétido ao meu lado. Mas já que hoje morreremos, conversemos.

Lamúrio se anima.

LAMÚRIO – Conta-me, qual teu último desejo?
MALÍCIO - Uma mulher bem quente e rechonchuda. Quero morrer no meio das pernas dela, a mais digna das mortes. Tu queres morrer como?
LAMÚRIO – Morrer? Eu não quero morrer. Sou covarde. Faltou-me coragem a vida toda, como poderia querer abraçar logo o maior dos medos. Mesmo que não tenha me restado nada, ainda tenho a vida, nela me agarro mais por covardia do que por amor. Foi sempre o medo quem guiou meus caminhos.
MALÍCIO - E que belo caminho o medo trilhou pra ti! Esquecido no mundo, sendo alimentado por um escravo que te odeia. E tu ainda recusas o único presente que O Sustentador tem pra te dar: uma morte justa.  Ela torna todos os homens iguais.
LAMÚRIO – Não fale bobagens. Eu e tu vamos morrer de frio, o rei vai morrer daqui muitos anos, de velho, numa boa cama coberta em ouro.
MALÍCIO - Não importam as circunstâncias, a morte em si é uma só. É um ato perene como o tempo; igual para todos os homens. A morte e o tempo nos unem.
LAMÚRIO - Que seja.
MALÍCIO - Além disso, a noite está muito fria e soube que o rei está doente. Vi o carcereiro comentando com um guarda ontem pela manhã. Tu entendes, carniça, a extinção é a única coisa neste mundo que eu, tu e o rei temos em comum. Nós três deixaremos esse plano hoje à noite. Que delícia. Que tempestade infernal!
LAMÚRIO – Cale a boca!

Em meio aos trovões e relâmpagos, escutam-se passos no lado de fora da cela.

MALÍCIO - Escutou isso! É ela! Está vindo nos buscar!
LAMÚRIO - Quem está ai! Responda-me demônio.
MALÍCIO - Não fale assim, leproso, a morte é uma senhora antiga e é preciso cortejá-la. É uma visita única. Ela está acima dos reis e muito acima dos papas. É exigente. Pede pompa.
LAMÚRIO - Seu lunático. Não a chame! Corte já essas palavras! Além do mais, tu achas que vais pra onde? Pelos teus crimes, o que te espera é muito pior do que essa torre desolada.
MALÍCIO – Caíste na conversa fiada dos padres, carniça. Diga-me, já viste um anjo?
LAMÚRIO – Nunca. Mas conheço quem viu.
MALÍCIO – Tudo mentira, sonho ou febre!  E um demônio, já viste?
LAMÚRIO – Tu és o mais perto que já vi do demônio.
MALÍCIO – Pobre criatura. Criaturazinha triste. Tudo o que há é o homem e a morte! Eu, tu e todos os outros (aponta a plateia) não somos resultado de um vontade ou de uma intenção. Não existe um ideal de nada. Nós que inventamos essa história de finalidade. Disseram que o homem é livre apenas para que pudessem fazer do homem culpado! (aponta Lamúrio)! Culpado! Eu não sou livre, tu também não, tão pouco somos culpados, somos o todo, carniça, e não há responsabilidade no todo! Há apenas a vida e claro, a morte.
LAMÚRIO – Mas também nunca vi a morte!
MALÍCIO – Tens certeza? Nunca viste a luz se apagar em um ser? O coração parar. A respiração cessar. Tens certeza de que nunca a viste? Não seja tolo!

Mais passos do lado de fora da porta. Lamúrio diz quase chorando:

LAMÚRIO – É ela?

Malício se levanta, fica de frente para a porta e fazendo uma extravagante reverência, declama:

MALÍCIO - Velha senhora. Aqueles que estão prestes a morrer te saúdam.
LAMÚRIO - Não!
MALÍCIO – Sim! Entra e toma o que é teu por direito. Sei que mesmo nós, almas amaldiçoadas, merecemos a honra do teu encontro. Peço apenas que devido a nossa calorosa recepção, ceife-nos sem muita dor. 

Lamúrio se levanta.

LAMÚRIO- Fica onde estás, velha das trevas. Aqui não é teu recinto. Aqui já mora o frio, a fome e a doença. Não precisamos de ti!
MALÍCIO - Não escuta este louco que não entende a dádiva da tua chegada. Toma o que vieste buscar. Não estas aqui a toa, não é?

Neste momento um pássaro negro invade a cela pela janela e pousa numa das vigas do teto. Os olhos brilham em meio a penumbra.
Malício ri. Lamúrio se desespera.

LAMÚRIO – Louco! Maldito! Trouxeste a morte para dentro.

Malício abre os braços grita:

MALÍCIO – Sim, sim, sim, toma a vida desses dois loucos!

Lamúrio pula sobre o companheiro que quase sem reação cai no chão e é estrangulado.
Depois de alguns minutos de luta, Lamúrio subjuga Malício. Quando o mesmo está quase morrendo a ave vai embora e a chuva cessa. Passado uns segundos.

LAMÚRIO – Ela se foi! Sim, ela se foi! Estamos vivos!

Malício cambaleante se levanta.

MALÍCIO – Não pode ser! Estava tudo como o previsto. Tenho certeza de que era ela!
LAMÚRIO – Vai ver ela queria apenas brincar conosco. Tua querida morte é na verdade uma sádica!

Malício vai para a janela.

MALÍCIO – Terei de viver. Que seja. Esse mundo fede a idiotas, a frustrados, fede a burrice e mediocridade.

Breve silêncio.

MALÍCIO - Posso divisar a aurora que se aproxima. Atrás daquelas montanhas está o sol trazendo mais um dia, ele venceu a minha esperança de finitude. Viverei. Que seja. Viverei.
LAMÚRIO – Eu gosto do sol.

Ouvem-se sinos distantes. Silêncio. Mais sinos.

MALÍCIO - Estes sinos não são normais.
LAMÚRIO - Algo aconteceu?
MALÍCIO – Sim.

Sinos. Silêncio. Sinos. Silêncio. Sinos. Silêncio e uma voz distante grita.

“O rei está morto. O rei está morto. O rei está morto...”

Os dois prisioneiros sorriem. Dão-se as mãos.
Inicia música medieval e os dois dançam de maneira eufórica, com pequenos pulos rítmicos e os braços dados apontando para o alto, como marionetes.

 H.S. Cardoni