A Última Visita
Sainete em um ato. Inspirado na obra “Estranho
Cavaleiro” de Michel de Ghelderode.
PERSONAGENS
Os Prisioneiros
Todos eles
calamitosos, asmáticos, doentes, sujos e vestidos com farrapos.
MALÍCIO – Inteligente, articulado e febril,
refém das próprias ilusões.
LAMÚRIO – Violento, medroso e triste,
mas inocente no seu pensamento limitado.
O Bardo
BARDO – Coberto com uma capa negra e um
grande capuz que impossibilita ver sua face. Introduz o sainete.
LUGAR
Torre/prisão de
uma fortaleza medieval. É noite de inverno e chove. A prisão tem uma janela sem
grades e uma porta sempre trancada. Penumbra. Som constante de chuva.
Os prisioneiros estão sentados cada um de um
lado da cela e sentem muito frio. Entra o Bardo.
BARDO - Não é preciso ter fé. Não é preciso errar por mundos distantes e
muito menos tocar anjos ou demônios; os homens não precisam de mística alguma
para ver a morte. O que segue é a história de dois malditos que a viram e escutaram.
Posto que somos semelhantes, escutai!
Sai o Bardo.Os prisioneiros iniciam o
diálogo.
MALÍCIO - A morte é bem vinda entre
nós. Está muito frio e já não tenho esperança alguma. Quem será que vai
primeiro, eu ou tu, imundo?
LAMÚRIO – Tomara que tu. Carniça.
LAMÚRIO – Tomara que tu. Carniça.
MALÍCIO – Eu também espero que venha buscar
a mim. Assim não precisarei passar horas em agonia, sozinho nessa torre maldita,
obrigado a observar teu cadáver fétido ao meu lado. Mas já que hoje morreremos, conversemos.
Lamúrio se anima.
LAMÚRIO – Conta-me, qual teu
último desejo?
MALÍCIO - Uma mulher bem quente e rechonchuda. Quero morrer no meio das pernas dela, a mais digna das mortes. Tu queres morrer como?
MALÍCIO - Uma mulher bem quente e rechonchuda. Quero morrer no meio das pernas dela, a mais digna das mortes. Tu queres morrer como?
LAMÚRIO – Morrer? Eu não quero morrer.
Sou covarde. Faltou-me coragem a vida toda, como poderia querer abraçar logo o maior dos medos. Mesmo que não tenha me
restado nada, ainda tenho a vida, nela me agarro mais por covardia do que por
amor. Foi sempre o medo quem guiou meus caminhos.
MALÍCIO - E que belo caminho o medo
trilhou pra ti! Esquecido no mundo, sendo alimentado por um escravo que te
odeia. E tu ainda recusas o único presente que O Sustentador tem pra te dar: uma
morte justa. Ela torna todos os homens
iguais.
LAMÚRIO – Não fale bobagens. Eu e tu
vamos morrer de frio, o rei vai morrer daqui muitos anos, de velho, numa boa
cama coberta em ouro.
MALÍCIO - Não importam as
circunstâncias, a morte em si é uma
só. É um ato perene como o tempo; igual para todos os homens. A morte e o tempo
nos unem.
LAMÚRIO - Que seja.
MALÍCIO - Além disso, a noite está
muito fria e soube que o rei está doente. Vi o carcereiro comentando com um
guarda ontem pela manhã. Tu entendes, carniça, a extinção é a única coisa neste
mundo que eu, tu e o rei temos em comum. Nós três deixaremos esse plano hoje à
noite. Que delícia. Que tempestade infernal!
LAMÚRIO – Cale a boca!
Em meio aos trovões e relâmpagos, escutam-se
passos no lado de fora da cela.
MALÍCIO - Escutou isso! É ela! Está
vindo nos buscar!
LAMÚRIO - Quem está ai! Responda-me demônio.
LAMÚRIO - Quem está ai! Responda-me demônio.
MALÍCIO - Não fale assim, leproso, a
morte é uma senhora antiga e é preciso cortejá-la. É uma visita única. Ela está
acima dos reis e muito acima dos
papas. É exigente. Pede pompa.
LAMÚRIO - Seu lunático. Não a chame!
Corte já essas palavras! Além do mais, tu achas que vais pra onde? Pelos teus
crimes, o que te espera é muito pior do que essa torre desolada.
MALÍCIO – Caíste na conversa fiada dos
padres, carniça. Diga-me, já viste um anjo?
LAMÚRIO – Nunca. Mas conheço quem viu.
MALÍCIO – Tudo mentira, sonho ou febre!
E um demônio, já viste?
LAMÚRIO – Tu és o mais perto que já vi
do demônio.
MALÍCIO – Pobre criatura. Criaturazinha
triste. Tudo o que há é o homem e a morte! Eu, tu e todos os outros (aponta a plateia) não somos resultado
de um vontade ou de uma intenção. Não existe um ideal de nada. Nós que inventamos essa
história de finalidade. Disseram que
o homem é livre apenas para que pudessem fazer do homem culpado! (aponta Lamúrio)! Culpado! Eu não sou
livre, tu também não, tão pouco somos culpados, somos o todo, carniça, e não há
responsabilidade no todo! Há apenas a vida e claro, a morte.
LAMÚRIO – Mas também nunca vi a morte!
MALÍCIO – Tens certeza? Nunca viste a
luz se apagar em um ser? O coração parar. A respiração cessar. Tens certeza de
que nunca a viste? Não seja tolo!
Mais passos do lado de fora da porta. Lamúrio
diz quase chorando:
LAMÚRIO – É ela?
LAMÚRIO – É ela?
Malício se levanta, fica de frente para a
porta e fazendo uma extravagante reverência, declama:
MALÍCIO - Velha senhora. Aqueles que
estão prestes a morrer te saúdam.
LAMÚRIO - Não!
MALÍCIO – Sim! Entra e toma o que é teu
por direito. Sei que mesmo nós, almas amaldiçoadas, merecemos a honra do teu
encontro. Peço apenas que devido a nossa calorosa recepção, ceife-nos sem muita
dor.
Lamúrio se levanta.
LAMÚRIO- Fica onde estás, velha das
trevas. Aqui não é teu recinto. Aqui já mora o frio, a fome e a doença. Não
precisamos de ti!
MALÍCIO - Não escuta este louco que não
entende a dádiva da tua chegada. Toma o que vieste buscar. Não estas aqui a
toa, não é?
Neste momento um pássaro negro invade a cela
pela janela e pousa numa das vigas do teto. Os olhos brilham em meio a
penumbra.
Malício ri. Lamúrio se desespera.
LAMÚRIO – Louco! Maldito! Trouxeste a
morte para dentro.
Malício abre os braços grita:
MALÍCIO – Sim, sim, sim, toma a vida desses
dois loucos!
Lamúrio pula sobre o companheiro que quase sem
reação cai no chão e é estrangulado.
Depois de alguns minutos de luta, Lamúrio
subjuga Malício. Quando o mesmo está quase morrendo a ave vai embora e a chuva cessa.
Passado uns segundos.
LAMÚRIO – Ela se foi! Sim, ela se foi!
Estamos vivos!
Malício cambaleante se levanta.
MALÍCIO – Não pode ser! Estava tudo
como o previsto. Tenho certeza de que era ela!
LAMÚRIO – Vai ver ela queria apenas
brincar conosco. Tua querida morte é na verdade uma sádica!
Malício vai para a janela.
MALÍCIO – Terei de viver. Que seja.
Esse mundo fede a idiotas, a frustrados, fede a burrice e mediocridade.
Breve silêncio.
MALÍCIO - Posso divisar a aurora que se
aproxima. Atrás daquelas montanhas está o sol trazendo mais um dia, ele venceu
a minha esperança de finitude. Viverei. Que seja. Viverei.
LAMÚRIO – Eu gosto do sol.
Ouvem-se sinos distantes. Silêncio. Mais
sinos.
MALÍCIO - Estes sinos não são normais.
LAMÚRIO - Algo aconteceu?
MALÍCIO – Sim.
Sinos. Silêncio. Sinos. Silêncio. Sinos.
Silêncio e uma voz distante grita.
“O rei está
morto. O rei está morto. O rei está morto...”
Os dois prisioneiros sorriem. Dão-se as
mãos.
Inicia música medieval e os dois dançam de
maneira eufórica, com pequenos pulos rítmicos e os braços dados apontando para
o alto, como marionetes.
H.S. Cardoni