sexta-feira, 24 de maio de 2019

DIVINA COMÉDIA


Vocês não imaginam o quão difícil é ter uma banda. É como tentar manter um casamento saudável entre quatro pessoas. Não somente isso, é como manter um casamento saudável entre quatro pessoas que além de casadas também trabalham juntas, e digo mais, não ganham um tostão! Vou organizar a ideia de uma forma mais simples: uma banda é um ménage sem sexo e com um CNPJ endividado.
Talvez por isso me agrade tanto uma canção da banda punk porto-alegrense Os Torto, formada em 1994, cujo o refrão entoa, em uma profusão de afeto e fúria: “vinte anos não é pra qualquer um / brigando no ensaio / brigando no churrasco / brigando no show / vinte anos não é pra qualquer um”. Eu acho essa música linda. Há outras canções dos Torto que me agradam muito. Uma delas traz uma poesia esplêndida, onde os punks quarentões nos expõem aos mais profundos calabouços da alma, local de residência das verdades inexoráveis a respeito da condição humana. Dizem-nos “nos meus 15 anos nada iria me deter / nos meus 20 anos eu queria revolucionar/ agora eu só quero saber se tem lugar pra eu me sentar”. Bravo!
Bom, eu precisava introduzir o drama de se ter uma banda semi-ruim, como é o caso da minha, para que vocês entendam o que foi aquela quarta-feira. O dia havia começado como todas as quartas desse último ano: comigo acordando às sete horas da manhã ainda sob efeito de um Rivotril, me vestindo o mais rápido possível e juntando os cacos para ter um dia miserável no meu cargo de Gestor de Conteúdo em uma rede de papelarias.
Chego no trabalho, coloco os fones de ouvido, escuto jazz e escrevo matérias desprezíveis para o blog e para as redes sociais da firma. São conteúdos como “5 dicas para organizar a sua mesa”, “7 produtos da Faber-Castell que vão alegrar seu dia”, “6 razões para se manter em um trabalho meio merda”. No caso dessa última matéria, só consegui listar um único ítem: o dinheiro. De qualquer forma, o trabalho não é fonte de tanto sofrimento, as pessoas na firma são gentis e me acham muito inteligente. Dia desses eu estava na minha sala escrevendo quando entra uma colega dos Recursos Humanos, ela vinha acompanhada de um novo funcionário, estava apresentando a empresa ao calouro. Ao ver-me, ela disse apenas: “esse é o Henrique, eu não sei muito bem o que ele faz, mas ele pensa”. Não pude discordar de tal afirmação.
Foi no meio da tarde que uma mensagem no grupo da banda no Whastapp rompeu a tranquilidade monótona do expediente. Era o baixista dizendo que não iria passar o som à noite, quando tínhamos um show pra fazer na casa de espetáculos Divina Comédia, junto das bandas Space Rave e Sentment Feeling. Disse ele que não iria pois tinha marcado uma discussão com a sua namorada. Francamente, eu estava me lixando para a passagem, mas o guitarrista não gostou da colocação do baixista e o chamou de “cusco”, remetendo à ideia de que ele era um cãozinho de sua namorada. A pobre baterista tentava conter os ânimos, mas reforçava a importância de passar o som. O resultado foi uma enorme discussão de banda via Whatsapp. Por fim, ficou acertado que haveria passagem.
Eu saí do expediente, peguei meus instrumentos e estava indo em direção ao Divina Comédia quando o guitarrista me ligou: “E aí, tudo bem?”, respondi “Tudo médio”, ao que ele finaliza “Vai ficar pior, o baixista acabou de me dizer que está saindo da banda”. Aquilo me deu uma fadiga. Como já disse, vocês não imaginam o quão difícil é ter uma banda. No entanto, eu ainda tinha esperança de que aquilo não passaria de uma discussão momentânea entre guitarrista e baixista.
Diz-nos Roland Barthes em Fragmentos de um discurso amoroso: “Quando dois sujeitos brigam segundo uma troca ordenada de réplicas e tendo em vista obter a ‘última palavra’, esses dois sujeitos já estão casados: a cena é para eles o exercício de um direito, a prática de uma linguagem da qual eles são co-proprietários; um de cada vez, diz a cena, o que equivale a dizer nunca você, sem mim, e vice-versa. […] Os parceiros sabem que o confronto ao qual se entregam e que não os separará é tão inconseqüente quanto um gozo perverso (a cena seria uma maneira de se ter prazer sem o risco de fazer filhos).”
Eu era um observador daquela briga que no fundo eu sabia que terminaria em excesso de cerveja, abraços efusivos e frases como “eu te considero pra caralho”. Mas enfim, apesar disso ser uma verdade pra mim, não o era para os demais integrantes, pois o climão estava instaurado; o guitarrista e o baixista estavam em verdadeiro sofrimento. A baterista, tadinha, só queria tocar em paz. Passamos o som naquele climão. Eu estava fingindo acreditar que aquele era o último show da banda, era preciso respeitar a cena.
O caso é que o show era numa quarta-feira no Divina Comédia, e eu não podia me importar menos com tudo aquilo. Fui comer um Xis após a passagem de som, enquanto o guitarrista e o baixista se uniram novamente, ainda que um pouco envergonhados, para fumar um baseado. Voltei do Xis já na hora de tocar. Os dois estavam de bem e terrivelmente chapados. Tocamos. O show foi fraco, o som estava ruim e havia pouco público, tirando umas pessoas que sempre vão às nossas apresentações. Gente querida, que gosta de acompanhar nosso trabalho, conhecemos cada uma pelo nome, é uma relação muito legal, no fim das contas.
Um desses fãs/amigos levou a irmã para o show. Uma ruiva espetacular de vinte um anos. Ela me seguia no Instagram, me largava umas pedradas, que no jargão da internet significa demonstrar interesse efusivo em alguém através das mídias sociais, mas eu sempre pensava: “não, Henrique, ela é muito jovem”. Esses pensamentos razoáveis perdem muita força quando você vê a ruivinha de vinte e um anos ao vivo. Era uma mulher completa, e vinte e um nem é tão pouco assim. Sentei ao lado dela após o show e, passados dez minutos de conversa a respeito de algum disco dos The Beach Boys, percebi que ela estava de fato na minha.
Fiquei ali sentado com a menina, dando alguns beijos e bebendo em ritmo muito acelerado enquanto assistia aos demais shows da noite. A casa havia enchido já na metade do nosso show em virtude da galera que vinha ver a banda Space Rave, conjunto do dono do estúdio Dub, uma galera mais velha, na casa dos quarenta anos, que se reúne quase que diariamente no estúdio para beber e ocasionalmente consumir substâncias. O show foi honesto, era um rock-punk com uma mulher no vocal, nada que tenha me chamado muito a atenção, mas era um show de fato honesto, pois os músicos acreditavam naquilo que faziam e se divertiam com aquilo. Em seguida foi a vez da banda Sentment Feeling.
A banda Sentment Feeling (repito o nome pois o acho maravilhoso) é formada pelo Carlinhos Carneiro (da Bidê ou Balde, Império da Lã e Bife Simples) e pelos, pasmem, aniversariantes do mês! Sim, a Sentment Feeling é uma banda do Carlinhos com seus amigos que fazem aniversário no mês de outubro. O som era horripilante, completamente mal tocado, ouso dizer que eles não haviam realizado nenhum ensaio. Aquilo tudo era tão ruim que chegava a ser ótimo. Ao lado da ruiva, eu ria sem parar e gritava embriagado ao final das “músicas”: “Viva a Sentment Feeling!”
Foi no meio da barulheira geral que cheguei ao ouvido da minha companheira e disse “vamos lá pra casa?”, ela respondeu que sim, o que me deixou muito contente. Que ótima quarta-feira, não? Acontece que ela não tinha entendido o que eu havia dito e só respondeu qualquer coisa que eu tampouco entendi, mas interpretei como uma positiva ao meu convite. Descobri isso pois minutos depois desse diálogo onde ninguém entendeu nada ela se levantou, me deu um tchau, agradeceu a noite, o show, e foi embora sem dormir comigo.
Eu fiquei lá, embriagado, fazendo social com aquela cena musical peculiar, tentando arranjar alguma outra mulher, e bebendo litros. Em dado momento, encontrei um amigo que conversava com uma outra amiga nossa. De cara já ficou evidente que nós dois queríamos ficar com a mesm amiga. Puxa, já eram quatro horas da manhã e era quarta-feira. A ruiva tinha me deixado com um tesão desgraçado e me abandonado. Eu tava topando qualquer negócio. Fiquei ali tentando pegar a amiga enquanto o amigo também tentava. O papo enveredou para novas formas de relacionamento, relações abertas, desconstruções conjugais, os prós e contras, enfim, toda essa coisa pós-moderna. Larguei minha piadinha clássica para essas situações, que é “Vocês sabem qual é o sabonete preferido do Bauman? O sabonete líquido.” O papo seguia e eu já pensava “isso aqui vai terminar em suruba, por mim tá ótimo”. Mas bastou eu ir ao banheiro que na volta encontrei os dois já se beijando de forma muito afetiva.
Embriagado em demasia, disse “vocês vão ter que ficar comigo também”. Em resposta, ambos me deram um afetuoso beijo, um em cada bochecha, respondi ríspido “Se foder, vocês parecem meus pais” e chamei um uber. Hoje me arrependo dessa deselegância final, mas quem nunca tomou um trago na quarta?
Cheguei em casa completamente bêbado às cinco horas da manhã, tomei meu Rivotril diário e deitei sabendo que precisava levantar às oito horas para estar na papelaria escrevendo artigos. Como eu já esperava, não acordei. Dormi até as onze e trinta. Me levantei com uma ressaca tenebrosa. A verdade é que eu estou demissionário no meu trabalho, boa parte de mim quer sair de lá. Quero me dedicar mais à música e aos estudos, por isso não me importei em faltar ao expediente.
Cheguei no escritórios às duas horas da tarde e em situação digna de pena. Confessei aos colegas curiosos que eu não havia ido na manhã em virtude de um trago, todos riram da minha estranha sinceridade. No final da tarde eu desci para fumar um cigarro e comprar uma Coca-cola, tudo isso no intento de curar minha ressaca. Quando volto para a sala, deparo-me com a muito séria Diretora Geral de Marketing. Ela me olha com frieza e diz “Henrique, nós precisamos conversar”. Respiro fundo, mantenho a tranquilidade. Eu carregava uma lata de Coca na mão esquerda e um pastel folhado na mão direita, já pensava na demissão iminente. Respondi com calma “Em que eu posso te ajudar, Patrícia?”, ao que ela me responde “Segunda-feira tu tem uma reunião com toda a diretoria, tu vai ser promovido.”